Uma cidade de pouco menos de 40 mil habitantes está no centro de uma disputa judicial que poderá definir como governos estaduais e municipais dos Estados Unidos tratam pessoas em situação de rua.
A Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça do país, anunciou que irá rever a decisão de um tribunal de apelações que determinou que a cidade de Grants Pass, no Estado do Oregon, estaria violando a Constituição ao aplicar leis que proíbem acampamentos de sem-teto e impedem pessoas de dormir em espaços públicos.
Segundo o Tribunal de Apelações para o 9º Circuito, ao multar quem não têm outro lugar para dormir devido à falta de abrigos e impedir que se instalem em calçadas, pontes, praças e outros locais públicos, a cidade estaria cometendo uma "punição cruel e incomum", o que é proibido pela 8ª Emenda da Constituição americana.
A decisão se aplica não somente a Grants Pass, mas aos nove Estados que fazem parte da jurisdição do tribunal (Alasca, Arizona, Califórnia, Havaí, Idaho, Montana, Nevada, Oregon e Washington), muitos dos quais enfrentam uma explosão no número de pessoas em situação de rua.
Um pronunciamento final da Suprema Corte é esperado apenas a partir de junho, mas o caso já é considerado um dos mais importantes deste ano no tribunal.
Se a decisão do tribunal de apelações for derrubada, o impacto mais imediato será na Costa Oeste.
Porém, se for mantida, cidades em todo o país poderão ser processadas ao aplicar punições contra pessoas em situação de rua diante da ausência de leitos de abrigo suficientes.
"Este é sem dúvida o caso mais importante relacionado a pessoas em situação de rua a chegar à Suprema Corte desde que os juízes derrubaram leis antivadiagem, nas décadas de 1970 e 1980", diz à BBC News Brasil Jeffrey Selbin, professor de Direito da Universidade da Califórnia em Berkeley.
"Na verdade, muitos dos tipos de leis agora contestados no âmbito deste caso são versões modernas de leis antivadiagem, aprovadas nas últimas décadas pelas cidades especificamente para punir pessoas sem-teto."
De um lado do debate, estão os direitos das pessoas em situação de rua de se abrigar em locais públicos quando não têm outra opção.
Do outro, está que tipo de poder as autoridades locais devem ter para estabelecer regras sobre o que é permitido em suas ruas e restringir acampamentos de sem-teto.
São questões consideradas urgentes em meio a uma crise de falta de moradia.
Segundo o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos, 653 mil pessoas estavam em situação de rua no país em 2023, um aumento de 12% em relação ao ano anterior.
"A questão é se o governo pode punir pessoas que estão involuntariamente em situação de rua por sua mera presença em público, quando elas não têm para onde ir", explica Selbin, autor de vários estudos sobre as respostas de governos aos sem-teto.
O que dizem os dois lados da questão
A defesa de Grants Pass diz que "não há nada de cruel ou incomum" em multas por violações à proibição de acampar em espaços públicos.
Também afirma que a decisão do tribunal de apelações contribuiu para o crescente problema de acampamentos na Costa Oeste, ao criar obstáculos judiciais que impedem respostas a uma "tragédia humanitária".
"[As decisões] estão, na verdade, prejudicando as mesmas pessoas que pretendem proteger", afirmam os advogados.
Na petição à Suprema Corte, a advogada Theane Evangelis e os outros membros da equipe dizem que "as consequências são terríveis para aqueles que vivem dentro e perto dos acampamentos".
Entre essas consequências, ela cita "crimes (incluindo um aumento 'chocante' de homicídios e agressões sexuais contra sem-teto), incêndios, ressurgimento de 'doenças medievais' (como tifo) nos acampamentos, danos ambientais (com enormes quantidades de detritos, agulhas e excrementos) e 'níveis recorde' de overdoses fatais de drogas e mortes nas ruas".
Mas os advogados dos sem-teto dizem que a decisão do tribunal de apelações não impede as cidades de responder à crise e são consistentes com décadas de precedentes da Suprema Corte.
Eles defendem ainda que não há necessidade de revisar o caso.
"Durante anos, os líderes políticos optaram por tolerar os acampamentos em vez de responder de forma significativa à grave escassez de habitação na Costa Oeste", diz a petição assinada pelo advogado Edward Johnson e outros membros da equipe.
Eles alegam que as cidades da Costa Oeste "ignoraram investimentos em capacidade de abrigo, habitação, serviços de saúde mental e tratamento de dependência" até que o problema da população sem-teto chegou a um ponto que não era mais "controlável ou tolerável para os eleitores".
"À medida que a crise se agravou, enfrentaram intensa reação pública por suas políticas fracassadas, e é mais fácil culpar os tribunais do que assumir a responsabilidade de encontrar uma solução", afirmam.
Calcula-se que mais de 40% de todos os sem-teto dos Estados Unidos vivam nos nove Estados que fazem parte da jurisdição do Tribunal de Apelações para o 9º Circuito.
Só na Califórnia, um dos Estados mais afetados, estima-se que mais de 170 mil pessoas estejam em situação de rua.
Há vários motivos por trás da crise: desde escassez de habitação a preços acessíveis e desigualdade de renda até dificuldades de acesso a tratamento de saúde mental e dependência de drogas. A pandemia também agravou a situação.
Muitas pessoas dormem na rua, ao relento, outras dentro de seus carros ou em barracas improvisadas em locais públicos.
Em alguns casos, estas pessoas se recusam a ir para abrigos, mas, em várias cidades, a oferta de camas é menor do que a demanda.
Os detalhes do caso levado à Suprema Corte
O caso diante da Suprema Corte é denominado "Grants Pass versus Johnson" e teve origem em 2013, quando a cidade começou a aplicar leis que proibiam acampar em locais públicos.
A proibição valia até para pessoas sem barracas, mesmo que usassem apenas um cobertor para se proteger do frio ao dormir na calçada, e também para quem passasse a noite no carro em um estacionamento.
Quem descumprisse as leis não era preso ou processado criminalmente, mas estava sujeito a multa. Com duas infrações, poderia ser banido do espaço público por um período de 30 dias.
Grants Pass não tinha abrigos para sem-teto, apenas dois pequenos programas habitacionais administrados pela iniciativa privada, um deles exclusivo para menores de 18 anos.
Esses locais eram insuficientes para atender uma população de rua estimada em cerca de 600 pessoas.
Foi nesse contexto que, em 2018, três pessoas em situação de rua moveram uma ação coletiva em nome de todos os sem-teto da cidade, alegando que essas leis representavam "punição cruel e incomum" e, portanto, eram inconstitucionais.
Uma das autoras, que morreu antes do desfecho do caso, era uma mulher que dizia ter ficado "involuntariamente sem-teto" após perder o emprego e a casa.
Ela afirmava ter acumulado, ao longo dos anos, uma dívida de quase US$ 5 mil (R$ 24,9 mil) em multas.
Os autores da ação alegavam que Grants Pass estava tentando forçar pessoas em situação de rua a se mudarem para outra cidade.
Diziam também que a aplicação das leis, combinada com a falta de abrigos, "criminalizava a existência" de indivíduos que não tinham para onde ir.
Um tribunal aceitou esses argumentos e proibiu Grants Pass de aplicar as proibições durante a noite.
Durante o dia, passou a ser exigido um aviso prévio de 24 horas antes de qualquer punição.
O caso então chegou ao Tribunal de Apelações para o 9º Circuito, que cobre a Costa Oeste dos Estados Unidos.
Em 2022, por dois votos contra um, os juízes concordaram que as proibições violavam a Constituição, já que não havia abrigos com capacidade para atender a população de rua.
O painel decidiu que Grants Pass não poderia multar indivíduos "pelo simples ato de dormir na rua com proteção rudimentar contra os elementos, ou por dormir em seus carros à noite, quando não há outro lugar na cidade para onde possam ir".
A decisão valia para todos os Estados sob a jurisdição do tribunal.
Quatro anos antes, o mesmo tribunal de apelações já havia tomado uma decisão semelhante no caso "Martin versus Boise", relativo à capital de Idaho.
Naquela decisão, os juízes decidiram que pessoas em situação de rua não podem ser criminalizadas por dormir em locais públicos se não tiverem outra opção de abrigo, porque isso seria "punição cruel e incomum" e inconstitucional.
A nova decisão ampliou esse argumento, englobando não somente punição criminal, mas também sanções civis.
Quando Grants Pass pediu que o caso fosse reconsiderado, a solicitação foi negada por 14 votos contra 13, e a cidade recorreu então à Suprema Corte.
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